Nunca dei tanto valor ao silêncio.
A um pequeno instante de silêncio. Como se o mundo estivesse reservado para mim.
Só para mim.
Sem que ninguém invadisse a minha privacidade. Sem que o som de ninguém invadisse a minha privacidade. Sem que a música fosse abruptamente interrompida...
Nunca dei tanto valor ao silêncio.
Quando me deito e quando me levanto.
Acordei querendo o direito de escolher o que ouvir e quando ouvir.
Me retirar de cena na hora em que não quiser mais fazer parte desse espetáculo.
Não quero ouvir o som dos aplausos fora de hora. Os murmúrios indigestos da platéia.
Acordei com todos os sons me torturando... Lentamente. Como têm sido nas últimas semanas. O interessante é que nunca tinha reparado na riqueza dos sons. Dos ruídos. Que entram e saem sem pedir licença. Invasores. De corpos e de almas.
A festa de confraternização.
Felicidade que me afeta.
O barulho dos pratos.
Fartura que me irrita.
Os motores desregulados.
Irresponsabilidade que me desafia.
O sobe e desce numa cidade que nunca dorme.
Nunca dorme.
Nunca dorme.
Nunca dorme.
Ou dorme muito pouco.
Estou com medo dos barulhos que têm invadido a minha vida.
Nunca me senti tão barulhento. Dentro e fora.
Ônibus na sala de casa.
Pensamentos barulhentos.
Obras do metrô.
Experiências barulhentas.
O salto agulha na escadaria.
Sentimentos barulhentos.
Hoje, os meus passos foram guiados pelos meus ouvidos. Em busca do silêncio.
Entrei numa Catedral.
Nem as grossas paredes de tijolo e concreto me livraram do barulho da cidade. Eu estava barulhento por dentro. Aos poucos a fortaleza neoclássica me acolheu.
Os vitrais... A pouca luz... O piso antigo... Os lustres imponentes...
Aos poucos fui descobrindo um pouco do silêncio.
Até que um som chamou a minha atenção...
Um murmúrio... Alguém atrás de mim rezava com tanta força... Com tanta fé... Finalmente um som que me fez bem. Não conseguia entender o que aquela mulher dizia, mesmo assim peguei carona nos seus sons. Tirei meus fones de ouvido. E me entreguei aquele ruído... Não contive a emoção.
Não quis olhar para trás. Não queria uma imagem. Queria apenas o som daquele momento. Oramos juntos. Em silêncio. Com a mesma força. Pedindo um pouco de sossego para os nossos corpos.
Nunca dei tanto valor ao silêncio.
Nunca dei tanto valor ao meu silêncio. As horas que desperdicei falando o que não devia. Ao tempo que desperdicei criando barulhos que não merecia. Às vezes que submeti todo o meu corpo a ruídos que não suportaria.
O grito da criança no colo da mãe.
Solidão barulhenta.
O ranger dos trilhos.
Ansiedade barulhenta.
A correria do executivo.
Congestionamento humano.
E o meu ouvido não pára de funcionar.
Buzinas. Chamados. Murmúrios. Passos. Apitos. Sirenes.
Dúvida. Lamento. Esperança. Saudade. Orgulho. Inveja. Raiva. Carência. Paciência.
Muito ruído de uma vez só.
Confesso, não resisti e olhei para trás.
Era uma senhora...
Negra...
cabelos brancos...
Mãos juntas, frente ao rosto.
Olhos cerrados.
Pele enrugada...
Ela estava de joelhos.
Tranqüila e silenciosa...