12 julho 2009

A arte da Fraqueza

Lá se vai mais um fim de semana. Mais um fim de semana de plantão.
Quarenta e seis horas dedicadas ao trabalho. Poucas horas de sono. Muito tempo dedicado aos desfechos de três reportagens.

O cão viajante – um pequeno vira-lata que percorreu trezentos quilômetros escondido na suspensão de um carro. Foi parar em Curitiba e ganhou um dono, um nome e até uma roupa de frio.

A última reportagem da série Bangladesh – oriente desconhecido. A saga do Raul numa das terras mais populosas e pobres do planeta.

E pra fechar, a reportagem da semana: execuções. Uma radiografia de um crime. Sobre o esquema montado para assassinar uma psicóloga de São Paulo.

Três grandes reportagens. Editadas com dedicação e uma característica: objetividade.
A mesma que falta quando passo o meu crachá na catraca e saio do universo da imagem e do som. Como num passe de mágica as decisões se transformam em algo tão complicado pra mim. Os caminhos escolhidos são sempre os mais longos. E se tiver mais curvas melhor. Às vezes gostaria de conduzir a minha vida como edito uma reportagem. Começo pelo meio. Deixo o início da história por último. Só consigo abrir o texto depois que vejo a história formada na minha cabeça. Aí sim a frase de abertura surge. Imponente. Decidida. Objetiva.
Consigo ver quando o VT está arrastado. Cansativo.
E por inúmeras vezes deixo que a minha vida se arraste. Que o IBOPE de minha existência despenque.
Escolho cada imagem. Cada cena como se fosse a principal imagem da matéria.
E não sou capaz de escolher uma camiseta para ir à reunião de terça feira. Prefiro sempre a preta do Joy Division.
Consigo controlar editores de imagem fujões e reclamões.
Mas não sei administrar as pessoas que estão ao meu lado quando saio da emissora. Escrevo um texto em questão de horas. Fecho uma história numa tarde.
E perco horas decidindo o que fazer no meu único dia de folga da semana.
Que agonia. Que contradição.
E melhor do que ninguém sei que contradições são o melhor molho das reportagens. Mas elas cansam. Quem aguenta a frase: uma terra de contradições.
E uma pessoa de contradições? É pior ainda.
Estou cansado. De desperdiçar toda a minha objetividade numa ilha de edição.
E toda a minha arte no mundo real.
Me irrita ser controlado no pouco tempo livre que me resta. Mas sem o controle sei que vou me perder na primeira esquina.
Por isso me deixem sempre só. Assim só eu saberei das minhas mancadas. Prefiro que mexam no meu texto. Mudem completamente a cara dele, mas me deixem só nas minhas mancadas. Reescrever minhas ações é bem mais complicado.
Hoje estou vazio. Sem almoço, sem lanche e sem janta. Devorei uma caixa de BIZ e agora uma lata de cerveja. Talvez duas. A barba por fazer. A roupa larga. Uma blusa sobre a outra. Queijo em rodela para matar a fome.
Fome de quê? Minhas energias foram gastas com um cachorro que fugiu de casa... E achou um dono. Com um mundo que provavelmente vai ficar debaixo d água por causa do aquecimento global e com um crime que chocou meia dúzia de moradores da Vila Madalena e destruiu uma família inteira.
Eles não são pequenos. Mas também não podem se tornar maiores do que eu.
E hoje me senti pequeno demais.
Meus ombros ficaram pesados. E a neblina invadiu a minha casa. Minha coluna se curvou. E tudo ficou sem graça. Velhos chavões me visitaram. E uma lenda se fez viva. A lerdeza da vida real bateu em minha porta. Entreguei meu crachá para a objetividade e me deixei invadir pelas dúvidas.
Nessas horas me lembro de uma cena. Importante pra mim porque me torna quase um artista. Ainda em Goiânia, editando uma das centenas de matérias sobre a Dona Vilma – aquela que roubou o Pedrinho da maternidade e o criou como filho. Cinquenta fitas espalhadas pela ilha de edição. E eu sabia exatamente o que havia em cada uma delas. Estavam comigo havia meses. Eram as coisas mais importantes pra mim havia meses. Minha chefe entra na ilha e me vê escolhendo fita por fita. Parecia inacreditável. Cada cena. Cada rosto daquela mulher exagerada. Estavam todos ali. Nem mesmo eu acreditava no que estava fazendo.
Quem me dera poder fazer isso com a minha própria vida. Saber exatamente onde estão as coisas que eu procuro. E num correr de fita achar o que realmente me interessa. Estou cansado de tirar das minhas dúvidas as certezas que vocês assistem.
Gostaria de um pouco mais de certeza nas minhas próprias dúvidas. Acho que até aceitaria ser uma anta no trabalho e ágil dentro do meu mundinho.
Hoje rodei em círculos. Briguei por três reportagens. Que foram ao ar e em minutos caíram no esquecimento.
E fora dali coisas muito reais batiam à minha porta.
Se eu pudesse editar a minha vida?
Cortaria muitos excessos. Frases de efeito demais. Chavões que não querem dizer nada. Passagens que me levam de nada a lugar algum. Imagens amareladas de mim mesmo... Desfocadas.
E me vem a imagem do maldito cachorro que viajou trezentos quilômetros e achou um dono. Das pessoas em Bangladesh que vivem comendo arroz e tomando chá. E do marido que há oito meses espera, pacientemente, a polícia de São Paulo descobrir quem mandou matar a mulher. Estou cansado de ter coragem suficiente para contar tantas atrocidades e de ser covarde o suficiente para ignorar a minha história.
Se eu pudesse editar a minha vida?
Começaria cortando as longas entrevistas de especialistas que falam sobre mim. Tiraria todas as artes gráficas que tentam explicar como tudo aconteceu.
Não me preocuparia com o contraponto. E deixaria várias coisas serem ditas sem checar a procedência antes.
Por final, reescreveria algumas coisas ao meu gosto.
E no final deixaria de ser triste como a família destruída por uma execução.
Faminto como os bangles que podem desaparecer do mapa...
E seria livre como o FOX. O vira-lata que fugiu de casa, ganhou um dono e um agasalho.

06 julho 2009

Casquinha do Mac Donalds


Mais difícil do que fazer...
É aprender a receber...
É descobrir todas as possibilidades que uma única vida é capaz de ter... de oferecer.
Isso dá medo. Porque exige muito de nós.

Ontem visitei um universo novo. Habitantes novos demais pra mim, mas tão dispostos a viver que me fizeram sentir vergonha de já ter vivido mais do que eles. Fiz uma viagem longa a um novo mundo. E por alguns momentos tive tanta saudade do meu pequeno universo. Quente, seguro, desorganizado. Até tropeçar numa velha lição que aprendi na terapia: “é sempre mais fácil lidar com o que é conhecido”.
Me vi reproduzindo o que meu pai fez no dia que lhe apresentei o mar pela primeira vez...
Me vi reproduzindo o medo de ser feliz que ele me ensinou com tanta sabedoria.
Aquele medo de dar o primeiro passo. E depois o segundo, e depois o terceiro.
Descobri que passei boa parte da minha vida colecionando lembranças pesadas que me impedem de andar de forma mais leve... Acho que é por isso que sou meio lento... Ou lento demais. Minhas reações estão anos luz aquém do esperado.
Também não as julgo... nem as levo por mal.
Estava passando o dia numa espécie de Domingo no Parque. Me revendo aos olhos de seres que habitam outro planeta. No fundo acho que o ser de outro planeta era eu. Solitário flutuando entre personagens mais leves que eu.
Mais que eu...
Menos que eu...
Comparações que não podem existir... Saí dessa viagem com a casa organizada e a alma tão mexida. Tão revirada.
Deixei que mexessem na minha vida... na minha casa... enquanto eu mesmo mexia em silêncio... na minha alma. Um cheiro novo no guarda roupa. Uma cama nova... novos quadros... novas roupas...
A mudança começa a tomar conta da minha realidade.
Era inevitável.
E aos poucos eu vou me tornando real. E isso provoca um medo medonho...
Um dia me ensinaram a fazer a barba...
No outro, a dirigir...
Mais tarde a me comportar em público...
Me ensinaram a beber bem antes disso...
O primeiro cavanhaque... Medo de ficar torto. Medo de me cortar.
E depois vieram outras lições que foram sempre inesquecíveis...
Aprendi a lidar com o pai que mora em mim.
A mãe mandona que tem um lugar reservado no meu peito... Às vezes ela aparece, cresce e me dá um aperto... E aos poucos vou me despedindo deles.
Das coisas velhas. Das velhas emoções. Abrindo espaço para as novidades. Para os novos. Aqueles que me guiam nesse novo planeta. Estranho. Meio terra de gigantes... Sonhos juvenis... Esperanças etéreas... Tão fortes. Tão cheios de esperanças.
Ontem visitei um planeta diferente do meu. E me dei conta que passei boa parte daminha vida sendo um fugitivo.
Tanto medo que ainda tenho medo.
Foi como estender a vida num varal. Cada pregador colocado por mim. Roupas sujas... encardidas... primeiras peças lavadas. Cheiro de amaciante. E lá veio aquela velha sensação de que a vida vai passando. Feroz... Veloz...
Estamos aí...
Pagando pra ver...
Ontem visitei um planeta diferente. Uma espécie de Domingo no Parque. Deveria ter sido perfeito. Mas voltei pra casa sentindo falta de uma coisa:
FALTOU A CASQUINHA DO MAC DONALDS.