11 janeiro 2011

O meu melhor...

Mãos sobre o teclado novamente. Como se fosse um cego sinto a textura de cada tecla. Desejo ter uma noite de sensações. Fecho os olhos e fico apenas com o som que vem da rua. A chuva batendo na janela. Forte. Decidida a cair sobre a minha casa. Aguda em cada gota...
Apago as luzes. E a escuridão me dá presentes. Palavras soltas que nascem para fazer sentido. Me convidam pra dançar. E... de pronto as aceito. Sejam bem vindas. Palavras de mim.

26 julho 2010

AMANHECER


Me lembro perfeitamente da primeira vez que vi o dia amanhecer.
Foi no Novo Horizonte - um bairro da periferia de Goiânia. Eu devia ter uns cinco anos ou menos. Estava numa festa com os meus pais. Por alguns instantes eles esqueceram de mim e da hora de ir pra casa.
E o dia amanheceu.
Lembro, como se fosse hoje, que o amanhecer parecia o desvendar de um mistério.
Ver a noite virar dia bem diante dos meus olhos.
Uma aventura.
Fiquei por um tempo olhando para o céu.
Ver o azul escuro se transformar em cinza e o cinza em azul...
No fim de semana, vi esse milagre acontecer mais uma vez diante de mim.
Olhos mais vividos. Bem mais velho do que naquele dia, no interior do Brasil.
Mas a magia continuava a mesma. O mistério se desfazendo acima de mim.
Voltei a ter a energia dos cinco anos.
E a vida voltou a ser simples como era antes.
Acho que minha noite também virou dia... mandou a gripe embora... as dores na alma... e os medos.
Agora, que venha o sol!

11 julho 2010

Encapsulado

Sentado na pequena sala.
Sensação estranha.
Estreito demais.
Cheiro de cigarro e incenso.
Música.
Álcool.
E desespero.
Volume no máximo.
É o máximo de mim.
Foi o máximo.
Sempre gostei de testar os meus limites.
E a vida sempre gostou de me testar. Eu sei que você sempre gostou.
Sempre me achei bom(zinho).
E a vida me fez o favor de colocar momentos de grande maldade.
Será que é verdade?
Às vezes, bem às vezes quero crer que sim.
Estou cercado.
Me cerquei.
Tantas vozes.
Tantos desejos.
Tantos sussurros.
Todos dentro da minha cabeça.
Dançando ao som das minhas velhas músicas. Mais uma contração...
Como dói parir idéias.
Medo de trincar o espelho. Já trincado.
De ficar com a geladeira vazia.
De tocar a música errada.
De estar errado.
E ter a certeza que que o certo está tão perto.
Hoje descobri um dom. Uma especie de poder. Super poder.
O de me encapsular...
Virei meu próprio comprimido. Cápsula plástica.
Transparente.
E o mundo lá fora.
Estou protegido. Até quando?
E quanto isso irá me custar.
Podem gritar... Gritem a vontade.
Vocês não me incomodam mais.
Os sons nunca me incomodaram.
Mas, por favor, parem de gritar dentro de mim.
Alma atormentada.
Intenso demais para sobreviver a mim mesmo. Levem um pouco de mim quando forem embora... da minha casa.
Estou dentro da capsula.
Vendo a vida embaçada.
Sons embaçados.
Meu suor embaçando minha própria visão.
Overdose do meu cheiro.
Plástico roçando a minha pele.
Palavras soltas.
Meu varal estendido. Desta vez tão sem sentido.
Damas em primeiro lugar.
E os cavalheiros que se danem. Que esperem seus cavaleiros...
Cavaletes... E uma tela...
Sem coragem para pintar. Sem coragem.
Coragem apenas para dizer que sou...
Sou tão...ENCAPSULADO...

21 abril 2010

A DAMA - uma ficção inspirada em fatos reais.

É noite. O quarto escuro. Aquele calor comum nas regiões do centro do Brasil. A pele enrugada sua sobre uma velha cama de casal. O espelho da penteadeira reflete sua imagem. Roupas de cama sujas. Um velho cobertor aos pés da cama. Cheiro de velhice. Corpo magro. Pesando sobre o fino colchão de molas. Pouca luz para quem já não enxerga quase nada. O olho direito se apagou faz anos. O esquerdo padece de uma grave catarata. Os vultos são os seus companheiros. A audição já se confunde entre a realidade e os barulhos do que foi uma vida inteira. A mente cansada prega peças. É difícil saber o que é realidade ou devaneio. Lampejos de sanidade. E logo os vultos aparecem. Tantas lembranças perdidas, confusas. A cronologia a abandou faz tempo. Está condenada a esperar.

Os olhos enrugados se abrem em busca de um pouco de luz. Um pouco de ar. Para refrescar os pulmões cansados. A voz é fraca. E há tão pouco para ser dito.
A janela se abre. É um quarto dos fundos. Vista pouco privilegiada. Vê-se apenas a área de serviço. Mas para quem está presa a uma cama durante tanto tempo, a área de serviço parece um oásis. As mãos enrugadas e trêmulas se esforçam para chegar aos cabelos. Secos. Amassados pela posição ereta. Poucos fios. Mal lavados. Mal cuidados. A vaidade também a abandou. As pernas se movimentam pouco. Estão magras. Flácidas.

Quem diria. Já andaram por tantos lugares. Viajaram tanto. Dançaram tanto. E agora, pesam sobre a cama. Unhas por cortar.

Até que uma brisa invade o quarto através da pequena janela. A brisa no rosto. Olhos fechados. E um leve sorriso. Quantas vezes esse rosto não sentiu brisas ao longo da vida. A dama sobre a cama relembra tanta coisa. Se entregou a um homem que nunca amou de verdade. Foi forte para construir uma família. E vê-la ser divida com a amante. Tempos difíceis aqueles. Em que o silêncio era virtude de mulheres bem educadas. A juventude foi gasta em nome da moral. E por ela foi capaz de fazer horrores. A moral a cegou por tantas vezes. Viu a sua família crescer, amadurecer e apodrecer diante dos seus olhos. Viveu momentos importantes da história mundial. Da história do Brasil. Mas não teve tempo de descobrir a própria história. Vítima da geração obrigada ao sucesso e a felicidade modelada. Viu seus filhos e netos se divorciarem. Uma revolução. A primeira gravidez fora do casamento. Filhos presos por uso de drogas. Pela repressão militar. Pela selvageria que tomou conta do mundo nos anos difíceis das ditaduras.

Uma dama. Em plena revolução.

Atropelada pelo tanque de guerra. O que sobrou? A brutalidade. Como em todos que passam os horrores dos fatos históricos. Austera demais para beijar os frutos do seu casamento. Não me lembro de vê-la beijando alguém. Me lembro do medo que a dama despertava em nós. A Rainha de um jogo de xadrez. Agora tombada sobre o tabuleiro. Seus herdeiros destruídos pela história. Soldados que deserdaram e seguiram seus próprios destinos. Cada um seguiu um caminho tortuoso. Difícil demais para quem foi programado ao sucesso. Ao luxo e ao dinheiro. Uma avalanche tomou conta de sua vida. Hoje ela está só sobre a cama. Me pergunto se ela ainda acalenta todos esses pensamentos. Ou se eles também a abandonaram. O vazio do quarto. Seus pertences perdidos. O que a Dama deixará para o futuro? Qual a sua herança? Tarde demais para perguntar isso. Há décadas vive só. O marido morreu há anos. Foi obrigada a enterrar um dos filhos – que colocou pra fora de casa. E foi encontrado morto tempos depois. Vítima de abandono.

Mas uma dama não pode ser responsabilizada. Esta era uma daquelas mulheres de época. Infelizmente destruída pela época que viveu. Foi uma das últimas. Massacrada pelas transformações sociais. E incapaz de ver que o mundo estava se transformando. Hoje, deitada na cama, quase noventa anos, ela sabe que o mundo mudou. Pena não ter conseguido mudar junto com ele.

Deitada sobre a cama, sentindo a brisa no rosto enrugado, provavelmente sabe que perdeu tempo. A mulher que falava com os espíritos agora está em silêncio completo. Não sente mais o peso do corpo. Os olhos estão fechados. A brisa se transformou em vento. Agita a velha cortina dentro do quarto escuro.
Mas ao fundo é possível ouvir um velho tango. Carlos Gardel. E aos poucos a vontade de dançar aparece.

O espelho da antiga penteadeira não reflete mais a velha dama. Me lembro apenas dos cabelos de cor acaju. Cheiro de laquê. Armados e impecáveis. O quarto não cheira mais a velhice. Está em festa. A velha dama saiu para o baile. Vai dançar um tango, como sempre gostou. Uma música merecida. Para quem perambulou tanto nesse planeta. Perambule agora pelo salão. Dê piruetas e comemore a vida. Tudo é lição.

Quando a velha cama de casal desaparecer do quarto. A casa antiga for vendida... as roupas do guarda-roupa não existirem mais... teremos a certeza de que os tempos mudaram.

E é inevitável não mudarmos com ele também.

Uma homenagem a uma pessoa querida que faleceu semana passada. Mais um pedacinho de mim se vai. Descanse. Você merece. E até o nosso próximo encontro.

18 fevereiro 2010

ARANHA VOADORA.

Dê a ela uma fagulha, uma fagulha que seja, e ela será capaz de transformá-la em um imenso incêndio.
Dê a ela uma faísca, uma mínima faísca, e ela será capaz de devolver-lhe um choque de centenas de volts.
Dê uma migalha, e terá de volta um banquete.
Uma gota, e terá um rio.
Dê a ela, uma lágrima, uma pequena e sincera lágrima, e você terá de volta o mar inteiro. Uma imensidão de sensações.
Dê a ela um pouco de tempo, e terá uma eternidade.
Um pouco de sono e descobrirá a definição certeira do estado de coma.
Um fio de cabelo lhe trará de volta uma tese complexa sobre a origem da música sertaneja.
Cuidado com aranhas voadoras. Elas tecem suas teias no ar.
Não se sustentam em nada. Não se prendem em nada. Flutuam desenhando suas trilhas.
Dê a ela uma linha e terá o carretel inteiro.
Desenrolado.
Cheio de nós meticulosamente elaborados.
Dê a ela um motivo, um pensamento que seja. Uma nesga de possibilidade. E ela será capaz de construir uma obra de arte.
Aranhas voadoras são tecelãs por natureza.
Crescem em emaranhados de teias.
Este é o seu lar. Seu habitat natural.
Desfilam com maestria por esse terreno. Não nasceram para rastejar pelo chão.
São leves demais para manter o peso que se precisa ter para viver aqui embaixo.
Aranhas voadoras voam mesmo sem asas.
Ficam à espreita do vento.
Finas, delicadas. Carregadas pelo vento.
Não são aranhas comuns. Não nascem em bandos. Não crescem ao lado de outras aranhas. Não comem seus amantes.
Raramente têm amantes.
O vento, seu principal aliado, também é o seu maior inimigo. Não as deixam ficar muito tempo num mesmo lugar.
Ninguém sabe dizer quanto tempo uma aranha voadora consegue viver.
Elas sempre desaparecem antes que isso aconteça.
Dizem por aí que se enrolam na própria teia. Até sumirem. Sufocam-se lentamente. Enrolam-se no fio dourado da vida. E desaparecem.
Elegantes, como uma aranha deve ser.
Discreta, como os que detêm a leveza de poder voar.
Dê as aranhas voadoras um segundo, e terão horas de entretenimento.
Uma segunda chance, e não perderão mais chance alguma.
Olhem para ela uma única vez... E jamais se sentirão sozinhos novamente.
Até o dia em que o vento chegar mais forte.
Dizem que só os fortes são capazes de amar aranhas voadoras.
Fortes para brigar contra o vento...
Para arrebentar as teias da vida...
E se arriscar na vida longe da terra.

10 fevereiro 2010

05...10...15...20...25...30...35...

Aos 05 – Ganhei uma estrelinha por ser o melhor aluno na escola.

Aos 10 – Descobri que tinha ereção. E que esse “fenômeno” da natureza me acompanharia para o resto da vida... A primeira pessoa que ficou sabendo foi a minha mãe. Contei pra ela durante o banho. Achei que era um problema... Só depois descobri que era a solução...

Aos 15 – Não tive festa de debutante. E descobri que existiam dois mundos bem definidos. Os meninos e as meninas. E que os sonhos deveriam ser diferentes. Um azul e outro rosa... Surgiram as festas de 15 anos. Música lenta. As primeiras ressacas. E o desejo de ter dezoito anos.

Aos 20 – O primeiro grande amor. E aquela sensação de que isso iria me perseguir pelo resto da vida. A primeira grande dor de amor veio também aos vinte. E aquela sensação de que era preciso esperar mais um pouco. E um dia sentir saudade dos dezoito anos.

Aos 25 – A responsabilidade. Hehehehehehehehehehehehehe. Aquilo que a gente acha que é responsabilidade. Salário. As contas a pagar. O carro. Coisas da vida. Achei que seria rico. Tudo me levava a crer que eu seria rico.

Aos 30 – Fui testemunha de que existe a crise dos 30. Com todos os seus requintes. Mudanças. E a felicidade de descobrir que as coisas podem ser modificadas quando a gente sentir vontade e tiver coragem.

E agora os 35 – Veio aquela estranha sensação de que não se pode resumir esse tempo todo em apenas sete momentos importantes. Número cabalístico. Estou aqui, há trinta e cinco anos. E experimentei trinta e cinco vezes a experiência do nascimento. Parido. Expulso para este mundinho de meu Deus. Caminhando para a meia idade. Para o máximo que meu corpo poderá me dar. Meu melhor esperma... Meu melhor estado físico. Meu melhor poder sexual. Sou um animal na plenitude... No alto da colina. Juba vistosa. Dentes afiados. Olfato impecável. Músculos enrijecidos. Olhando a relva. A selva. O mundo ao meu redor. E, no fundo sabendo que cada descoberta é a despedida. Em breve outro animal chegará. Mais peludo, mais forte, mais animal... E essa trajetória iniciará outro caminho.
E fico aqui me perguntando:
Este será só mais um dia?
Comum para uma centena de pessoas?
Mas, para algumas (assim como eu) este será um dia diferente. Aquelas coisas sociais que a gente cresce acostumado a seguir. Cumprimentos de feliz aniversário. Desejos de felicidades. Essas coisas. Na verdade queria que o aniversário fosse um evento. A meia noite, o aniversariante mudaria de cor. Eu queria ficar azul. Assim, todo mundo saberia que é o meu aniversário. Não haveria desculpas para o esquecimento. E os estranhos teriam a oportunidade de nos parabenizar. Daqui há quinze minutos – a meia noite – eu ficaria azul. E passaria dessa cor, até a meia noite do dia 11. Esse seria o meu dia. Andaria pela Paulista azul de aniversário. No metrô, as pessoas me dariam parabéns. Porque estou azul. E ainda correria o risco de encontrar alguém verde. E parabenizar um estranho que faz aniversário no mesmo dia que eu.
Porque restringir o meu aniversário a mim somente?
“Quem sabe então assim, você repare em mim..." diz a música que vem do som na minha sala.
Vamos liberar a festa para a coletividade. Hoje, meu desejo de aniversário é amanhecer azul... Inteiro. Dos pés à cabeça... Até pensei na roupa certa para o trabalho. Um básico. Azul. Seria uma pessoa azul andando pela rua. Ninguém, precisaria ter o número do meu telefone para descobrir que hoje é o meu aniversário. Ninguém também teria que se preocupar em lembrar o aniversário do melhor amigo. A gente acordaria colorido... e pronto.
Meia noite...
Ainda estou vestido a cor da pele.
Não fiquei azul.
Mas decidi o que fazer...
“Vou deixar a rua me levar... ver a cidade se acender...”
Lá se vai a camisa... No chão da cozinha. Sinto a pouca brisa de um dia quente de verão. Um dia quente de aquecimento global.
Adeus sapatos e meias. E consigo sentir o frio do piso da cozinha. Um certo arrepio da aventura de me despir.
Não quero mais o relógio. Objeto cheio de história. Ganhei-o em meados de 1997... Tentei afogá-lo no mar, no Rio, o de Janeiro. E meu pai, anos depois, o salvou da gaveta. Trocou a bateria. E descobri que as coisas a prova d água existem... A prova do tempo também.
O jeans foi embora em frente a geladeira. Sentir o frio nas minhas pernas. Mãos frias segurando a lata. E seguimos o nosso destino. Copo cheio. Gole perfeito. Música ideal... O primeiro telefonema... Parabéns pelos trinta e cinco. De quem ama demais ao ponto de se manter acordado para te agraciar...
E lá se vai a cueca.
Estou nu nos meus primeiros instantes de vida... Mais uma vez. Nu.
E a liberdade toma conta de mim. O frio do encosto da cadeira... O vento no rosto. E aí me vejo bruxo e predigo: meus 35 serão livres...
Serei um ser azul...
andando pela Paulista...
Nu... ouvindo as músicas que me agradam... E aí poderei dizer:
O que você fez aos trinta e cinco?
Eu sei o que eu fiz no primeiro dia dos 35...
Fiquei livre... em pêlo.
Pelo menos...

28 janeiro 2010

No silêncio das letras.

Precisava de uma página em branco.
Uma noite limpa. Sem que nada tivesse sido escrito nela antes.
E a partir daí sair rabiscando minhas impressões nessa misteriosa teia de observações.
Com tanto medo. E ao mesmo tempo, sem medo de aparecer. E enquanto rabisco meus traços tortos e rudimentares vejo o que é tão claro.
Aquilo que é sempre escondido.
Escondidinho.
Não nasci para aqueles que apontam. Infelizmente. Não nasci para aqueles que me tocam com suas mãos frias e suadas de medo.
Às vezes acho que ainda não nasci. Quando penso que estou voltando é quando mais caminho adiante. E seguir em frente dá um medo. E esse medo vai estar comigo pra sempre.
Medo bobo de criança...
de jovem...
de adulto.
É como esquecer de pagar uma conta que venceu. Ela te persegue. Você acorda no meio da noite e lembra que deixou de pagar a conta. Perde o sono. É tarde demais.
E de repente somos perseguidos. E damos voltas. Piruetas para despistar o destino. Destino?
Sera?
Não.
Ninguém despista o destino. A gente enrola a vida. E enrolar é comigo mesmo. É uma delícia. Dá um prazer dizer mais do que o necessário. Perder tempo, linhas, toques e palavras. Esbanjar sentidos e significados. Enquanto o objetivo final está ali. Estirado a nossa frente.
Existem dias em que os dias parecem os últimos. E depois deles não haverá nenhum outro. E quando isso acontece a gente deixa de ser humano. Passa a ser animal. Irracional. E come o alimento do outro. Arranca a comida do próximo. Sem dó. Precisamos sobreviver. E quando me roubam a comida... aquela que pedi com cuidado. Ou plantei com esmero. Eu apenas olho.
Olho.
Vejo a minha comida ir embora. Arrancada de minhas mãos. Fico complacente com os outros pobres ao meu redor.
Mas qual o limite da complacência?
Até que eu morra de fome?
Fraco?
Ou até que eu grite de raiva. Mesmo com a sensação de que ninguém irá me ouvir. Em alguns momentos consigo ver que os que me roubam sentem muito mais fome que eu. Estão muito mais esfomeados do que eu. São famintos e por isso me agridem. Assim como eu o faria.
E me impressiona como os famintos parecem fortes.
Me encanta a força que o instinto de sobrevivência imprime nas pessoas.
Pensei agora há pouco o que teria sido de mim se estivesse no Haiti. Sobrevivente do terremoto. Sem família, sem casa, sem comida. Vejo aquelas pessoas se amontoarem em filas, em conglomerados de pedintes, animais racionais irracionalmente enfileirados. Em busca de comida. E quando uma caixa aparece eles a disputam com tanta força. E aqui, sentado na minha cozinha, tenho a certeza que sentaria no chão e me arrependeria de estar vivo. E a tristeza toma conta de mim quando a constatação é simples. Fraco demais para uma luta.
Por favor, enviem mais comida aos desabrigados.
Não os obriguem a brigar entre si.
Ou deixar a irracionalidade ser a única saída racional.
Me lembro de um dia que estava sentado na calçada, na parada de ônibus, 12, 13 anos. Fui ameaçado por dois meninos mais velhos. Queriam me bater. Aquelas coisas de adolescência. Eu reagi – com tanto medo – e os mandei à merda. Eles voltaram e me bateram tanto. Na frente de todos que estavam naquela parada de ônibus.
Acho que naquele dia decidi que era mais seguro não enfrentar as pessoas.
Deixa... que uma hora elas vão cansar e vão embora.
É incrível como essa decisão virou regra na minha vida. E hoje, sentado na minha casa, ainda tento me despedir desses meninos. Acho que já chega. Vocês não fizeram por mal. Mas, agora preciso ir. Tento me desfazer da vergonha de apanhar em público e agir como se nada tivesse acontecido.
Tanto tempo depois ainda escolho os mesmos meninos para sentarem ao meu lado. Está na hora de mudar de acento.
Na minha profissão aprendi que os finais dos textos devem ser positivos. Pra cima. Devem levar uma mensagem. Nunca devemos terminar uma matéria com algo ruim. Esperança.
Temos que dar esperança para o telespectador.
Não consigo escrever o final.
Nem sei que final essa história merece ter.
Não sinto raiva de ninguém.
Só estou tentando entender e pedir um pouco de tempo.
Cheguem com calma, por favor.
Tenho medo de pessoas.
Porque delas me alimento.
E poque elas podem me matar de fome.