21 abril 2010

A DAMA - uma ficção inspirada em fatos reais.

É noite. O quarto escuro. Aquele calor comum nas regiões do centro do Brasil. A pele enrugada sua sobre uma velha cama de casal. O espelho da penteadeira reflete sua imagem. Roupas de cama sujas. Um velho cobertor aos pés da cama. Cheiro de velhice. Corpo magro. Pesando sobre o fino colchão de molas. Pouca luz para quem já não enxerga quase nada. O olho direito se apagou faz anos. O esquerdo padece de uma grave catarata. Os vultos são os seus companheiros. A audição já se confunde entre a realidade e os barulhos do que foi uma vida inteira. A mente cansada prega peças. É difícil saber o que é realidade ou devaneio. Lampejos de sanidade. E logo os vultos aparecem. Tantas lembranças perdidas, confusas. A cronologia a abandou faz tempo. Está condenada a esperar.

Os olhos enrugados se abrem em busca de um pouco de luz. Um pouco de ar. Para refrescar os pulmões cansados. A voz é fraca. E há tão pouco para ser dito.
A janela se abre. É um quarto dos fundos. Vista pouco privilegiada. Vê-se apenas a área de serviço. Mas para quem está presa a uma cama durante tanto tempo, a área de serviço parece um oásis. As mãos enrugadas e trêmulas se esforçam para chegar aos cabelos. Secos. Amassados pela posição ereta. Poucos fios. Mal lavados. Mal cuidados. A vaidade também a abandou. As pernas se movimentam pouco. Estão magras. Flácidas.

Quem diria. Já andaram por tantos lugares. Viajaram tanto. Dançaram tanto. E agora, pesam sobre a cama. Unhas por cortar.

Até que uma brisa invade o quarto através da pequena janela. A brisa no rosto. Olhos fechados. E um leve sorriso. Quantas vezes esse rosto não sentiu brisas ao longo da vida. A dama sobre a cama relembra tanta coisa. Se entregou a um homem que nunca amou de verdade. Foi forte para construir uma família. E vê-la ser divida com a amante. Tempos difíceis aqueles. Em que o silêncio era virtude de mulheres bem educadas. A juventude foi gasta em nome da moral. E por ela foi capaz de fazer horrores. A moral a cegou por tantas vezes. Viu a sua família crescer, amadurecer e apodrecer diante dos seus olhos. Viveu momentos importantes da história mundial. Da história do Brasil. Mas não teve tempo de descobrir a própria história. Vítima da geração obrigada ao sucesso e a felicidade modelada. Viu seus filhos e netos se divorciarem. Uma revolução. A primeira gravidez fora do casamento. Filhos presos por uso de drogas. Pela repressão militar. Pela selvageria que tomou conta do mundo nos anos difíceis das ditaduras.

Uma dama. Em plena revolução.

Atropelada pelo tanque de guerra. O que sobrou? A brutalidade. Como em todos que passam os horrores dos fatos históricos. Austera demais para beijar os frutos do seu casamento. Não me lembro de vê-la beijando alguém. Me lembro do medo que a dama despertava em nós. A Rainha de um jogo de xadrez. Agora tombada sobre o tabuleiro. Seus herdeiros destruídos pela história. Soldados que deserdaram e seguiram seus próprios destinos. Cada um seguiu um caminho tortuoso. Difícil demais para quem foi programado ao sucesso. Ao luxo e ao dinheiro. Uma avalanche tomou conta de sua vida. Hoje ela está só sobre a cama. Me pergunto se ela ainda acalenta todos esses pensamentos. Ou se eles também a abandonaram. O vazio do quarto. Seus pertences perdidos. O que a Dama deixará para o futuro? Qual a sua herança? Tarde demais para perguntar isso. Há décadas vive só. O marido morreu há anos. Foi obrigada a enterrar um dos filhos – que colocou pra fora de casa. E foi encontrado morto tempos depois. Vítima de abandono.

Mas uma dama não pode ser responsabilizada. Esta era uma daquelas mulheres de época. Infelizmente destruída pela época que viveu. Foi uma das últimas. Massacrada pelas transformações sociais. E incapaz de ver que o mundo estava se transformando. Hoje, deitada na cama, quase noventa anos, ela sabe que o mundo mudou. Pena não ter conseguido mudar junto com ele.

Deitada sobre a cama, sentindo a brisa no rosto enrugado, provavelmente sabe que perdeu tempo. A mulher que falava com os espíritos agora está em silêncio completo. Não sente mais o peso do corpo. Os olhos estão fechados. A brisa se transformou em vento. Agita a velha cortina dentro do quarto escuro.
Mas ao fundo é possível ouvir um velho tango. Carlos Gardel. E aos poucos a vontade de dançar aparece.

O espelho da antiga penteadeira não reflete mais a velha dama. Me lembro apenas dos cabelos de cor acaju. Cheiro de laquê. Armados e impecáveis. O quarto não cheira mais a velhice. Está em festa. A velha dama saiu para o baile. Vai dançar um tango, como sempre gostou. Uma música merecida. Para quem perambulou tanto nesse planeta. Perambule agora pelo salão. Dê piruetas e comemore a vida. Tudo é lição.

Quando a velha cama de casal desaparecer do quarto. A casa antiga for vendida... as roupas do guarda-roupa não existirem mais... teremos a certeza de que os tempos mudaram.

E é inevitável não mudarmos com ele também.

Uma homenagem a uma pessoa querida que faleceu semana passada. Mais um pedacinho de mim se vai. Descanse. Você merece. E até o nosso próximo encontro.